Três capítulos para você se perder em novos mundos.
Boa viagem! ;)

Capítulo 1 (microfone)

1. O discurso

A pedrinha chutada pelo rapaz rolou pelo asfalto, quicando.

— Vance, melhor sair da rua. Vai acabar atropelado — disse a jovem que caminhava ao seu lado.

Ele riu.

— Até que não seria má ideia — respondeu. — Melhor do que morrer de fome ou ser feito em pedaços por uma bomba.

— Falo sério.

— Eu também. — E Vance chutou de novo a pedrinha.

Dessa vez, ela ricocheteou no meio-fio e acabou atolada numa poça. Na água suja, ele enxergou seu reflexo: cabelos e olhos escuros, sobrancelhas arqueadas, meio cobertas pela franja bagunçada. Analisou as bochechas, mais cavadas do que o usual. Estava magro. Naqueles tempos, quem é que não estava?

— Ainda assim, será difícil encontrar um carro disposto a tirar minha vida — Vance continuou, erguendo os olhos para a rua vazia, depois para os edifícios abandonados, com portas e janelas cobertas por tábuas. — Olhe para esse lugar, Ada. É a capital de Náglia… Mas parece uma cidade fantasma.

— Pode ser, mas se morrer agora não verá o que tenho para lhe mostrar — rebateu a menina.

Vance voltou-se para ela. Sequer o cenário deprimente podia privá-la do brilho que parecia sempre emanar, com sua pele clara e vibrantes cabelos vermelhos. Ela lembrava luz e fogo. Menos nos olhos. Com um penetrante tom de mel, eram duas ilhas naquele mar de fulgor.

— Como assim?

— Venha e descubra por si mesmo. A menos, é claro, que prefira seu plano original.

— Eu posso ser atropelado amanhã. — Ele sorriu.

Os dois viraram numa esquina. Aí, aconteceu.

Primeiro, um zumbido baixo e confuso, mas que rapidamente cresceu, agudo e ensurdecedor. Sua fonte surgiu das nuvens cinzentas, antes tão longe que mais parecia um pássaro negro, para em seguida baixar e rasar sobre a cidade. Um avião de guerra.

O avião passou raspando nos prédios, balançando suas antenas com rajadas de vento, perto o suficiente para deixar à mostra as metralhadoras presas às asas. Vance abraçou Ada, apertando-a contra o corpo enquanto fulminava a aeronave com os olhos.

Quando o avião desapareceu no horizonte, Vance não se conteve.

— Guarde seu maldito espetáculo para você, Balver!

— Acalme-se, Vance! — Ada tentou. — Isso acontece quase todo dia. Os aviões de Rava só passam e pronto.

— E é isso que odeio. Querem nos humilhar, nos amedrontar, mostrar o quanto somos indefesos!

— Tudo bem. Não importa, tão logo não caiamos nesses truques baratos.

— Como consegue ficar tão tranquila?

— Sempre haverá motivos para sorrir. Esqueça os aviões, o presidente Balver e apresse o passo. Quero lhe mostrar um desses motivos.

Ada morava numa casinha simpática no final da rua. Não que fosse muito bonita nem nada, mas estava bem cuidada apesar dos tempos difíceis, e por isso destacava-se fácil entre as outras casas do bairro, quase todas abandonadas. Assim que entraram, a menina disparou até seu quarto. Quando Vance a alcançou, ela puxava uma grossa agenda vermelha de debaixo do colchão.

— É essa a surpresa? Finalmente lerei seu diário? — ele brincou.

— Ninguém nunca fará isso! Mas guardei aqui o que achei.

Ada folheou as páginas até encontrar um retrato e o estendeu ao amigo. Vance não conhecia o jovem sorrindo na foto, mas não precisou perguntar quem era. Seu olhar era penetrante e sereno… Como o da filha.

— É seu…

— Pai — Ada completou, virando a foto para revelar um nome.

Ivo Vilis

— Onde encontrou isso?

— Naquele quarto lá embaixo… Aquele que vive cheio de entulhos. Minha mãe deve ter escondido outros retratos por lá.

— Eu imagino o motivo.

A expressão de Ada ficou estranha.

— Como assim?

Vance se arrependeu das palavras. Poucas coisas tiravam a amiga do sério, mas questionar o passado do pai era uma delas.

— Ele desapareceu alguns meses antes de você nascer, não foi? As lembranças devem ser dolorosas.

— Talvez… — A irritação da amiga secou. — Minha avó dizia que ele passava tempo demais longe de casa, sem nunca explicar o porquê. Você acha mesmo que ele…

— Ada — Vance a interrompeu. —, se tem alguma coisa que eu acho é que não vale a pena se torturar com esse tipo de coisa. Eu sei como é.

Sabia sim. Bem demais.

Foi a vez dela se retratar.

— Eu… Desculpe-me, Vance.

O garoto balançou a cabeça.

— Só aceito as desculpas se me deixar ler seu diário.

— Então viverei para sempre em débito — ela respondeu.

E os dois acabaram rindo.

Vance sempre almoçava na casa de Ada. Às vezes, se sentia mal por isso — não queria ser um estorvo quando tantas famílias lutavam para alimentar seus filhos —, mas também sabia que morreria de fome se fosse depender da minúscula pensão que recebia do governo.

— Juro, é impossível tirar qualquer coisa apetitosa dessas rações insossas que restaram nas prateleiras dos mercados… — lamentou a mãe de Ada. Seu nome era Ágata, e ela tinha os mesmos cabelos ruivos e nariz arrebitado da filha. — Aqui está — ela disse, servindo a sopa que preparara aos garotos. — Ficaria muito melhor quente, mas com o corte do gás…

Naquele instante, a luzinha vermelha da tevê sobre a geladeira acendeu.

— A eletricidade voltou? — Ada perguntou, confusa.

— Tão cedo? Ainda falta muito para anoitecer.

— Deve ser algo especial. — Ada ligou o aparelho.

Por alguns segundos, não viram nada além de estática. Então, aos poucos, os chuviscos se dispersaram e revelaram um repórter.

— Boa tarde — ele disse, visivelmente apreensivo. — A rede elétrica de Náglia foi restabelecida para transmitirmos um discurso feito há pouco pelo presidente de Rava, Bartus Balver, sobre a declaração de…

O chiado da televisão cresceu e a imagem sumiu, girando caoticamente.

— Droga de sucata. — Ada deu um tapa na tevê.

A imagem voltou, mas o repórter havia sumido. Em seu lugar, uma multidão se amontoava diante de um palanque. Um homem surgia no tablado… As pessoas aplaudiam… Aquele era Bartus Balver.

O presidente de Rava tinha um aspecto frio. Seus olhos claros, seus cabelos claros, seu terno claro… Tudo nele parecia gelado — e, como o inverno, seu semblante era rígido. Quando ele se aproximou do microfone, a plateia se aquietou imediatamente. Então, Bartus Balver começou seu discurso.

— Caros irmãos de Rava. Hoje finalmente tomaremos as rédeas do destino e salvaremos o mundo. Sempre lutamos para levar o progresso aos confins do planeta, mas nossa missão requer muito mais do que determinação. Precisamos de ferro… Muito mais ferro do que nossa terra pode nos fornecer. Nossos aliados não suprem nossa demanda e nossos inimigos resistem a qualquer negociação. Acuados ao sul, num território que uma vez já foi nosso, o país de Náglia esconde as mais valiosas jazidas. Tentamos libertá-las pacificamente, mas só nos resta tomá-las à força de suas mãos avarentas. Irmãos de Rava… EU DECLARO GUERRA A NÁGLIA!

A multidão enlouqueceu.

Por alguns instantes, o presidente Balver apenas assistiu ao entusiasmo do seu povo, até erguer a mão e instaurar o silêncio outra vez.

— Nós, contudo, não agiremos como feras. Antes de acionarmos o exército, daremos um mês para Náglia. — Balver fez o número um com os dedos. — Um mês para que se rendam em paz. Um mês para que evitem milhares de mortes. Vamos torcer para que sejam sensatos.

A eletricidade foi cortada. A televisão se apagou. Vance manteve os olhos na tela escura, estupefato.

Chovia forte naquela noite, como se os próprios céus lamentassem por Náglia. Vance não conseguia dormir. A água que batia contra a janela o incomodava. O velho colchão parecia ainda mais desconfortável. Tudo conspirava para mantê-lo desperto, remoendo aquele impasse: o que aconteceria? O governo aceitaria a derrota e entregaria o país? Ou resistiria, apesar de saber que a vitória era impossível?

Lá pelo fim da madrugada, quando os primeiros raios de sol clareavam o céu nebuloso, batidas na porta surpreenderam o garoto.

Algo aconteceu. Algo ruim.

Deu de cara com Ágata. A mãe de Ada tinha os olhos inchados e as roupas completamente encharcadas.

— Socorro, Vance! — Ela o segurou pelos ombros. — A Ada desapareceu!

Capítulo 2 (diário)

2. A garota perdida

Adolescente de dezesseis anos foge assustada pelo anúncio da guerra.

Com essas palavras o inspetor da polícia descreveu o desaparecimento de Ada, e a investigação parou por aí. É claro que Vance não acreditou.

Conhecia a amiga desde criança — Ada nunca iria fugir, especialmente sozinha, sem deixar um bilhete e sem levar nada consigo. Ela não tinha fugido… Tinha sido levada.

Mas por quem? E por quê?

Vance e Ágata vasculharam a cidade à procura de Ada, mas ninguém sabia de coisa nenhuma — e ninguém parecia disposto a ajudar, com a nuvem negra da guerra pairando sobre o país. Temendo as bombas de Rava, a cada dia mais gente abandonava a capital, e o desaparecimento de uma jovem qualquer não poderia ser mais insignificante.

Com o fracasso nas buscas, Ágata logo perdeu as esperanças. Por algum tempo, ela parou de comer… Parou de falar… E Vance precisou se esforçar para convencê-la a seguir procurando.

O dia seguinte seria diferente. Encontrariam uma pista. Ada iria voltar.

Vance repetia aquelas frases como se elas formassem um mantra, e nas noites em claro repensava cada detalhe do sumiço da amiga…

Porque não aceitava que um mistério pudesse não ter solução.

Quando a saudade apertava, Vance visitava a casa de Ada, em busca de qualquer coisa que pudesse ter passado despercebida. Sabia o quanto aquilo era improvável — já fazia semanas do desaparecimento da amiga —, mas o impulso era irrefreável. Naquela manhã, ele vasculhava o quarto de Ada pela enésima vez.

Pela janela aberta, ouvia os últimos vizinhos partirem, arrastando as malas pesadas pelo asfalto. Faltavam dois dias para terminar o prazo estipulado por Balver, o presidente de Rava, e o governo de Náglia continuava sem uma decisão.

Não que Vance se importasse com a guerra. Só se importava com Ada, e continuava sem saber o que acontecera com ela. Frustrado, ele sentou-se na cama…

E sentiu algo esquisito debaixo do colchão.

O diário. Como pudera ter sido tão idiota?

Lá estava a velha agenda vermelha… Ao abri-la na primeira página, Vance mal podia respirar.

Este diário pertence à Dâmia

Dâmia? Aquele era o nome da personagem favorita de Ada, a princesa de uma peça que ela assistira quando criança… Ou de um filme. Vance não tinha certeza. Por todo o diário, era o único nome que a amiga usava para se referir a si mesma… Mas não existia muito motivo para isso.

As anotações de Ada não passavam de observações corriqueiras. Não havia nada de confidencial por ali — muito menos qualquer coisa que esclarecesse seu desaparecimento. Quando chegou à última página, Vance já estava prestes a atirar o diário no chão — quase fez isso, mas percebeu que havia algo ali. A data no topo indicava a véspera do desaparecimento… E Ada só escrevera duas palavras na página.

Meu pai

O clipe continuava preso num canto da folha… Mas o retrato do pai da menina sumira. Para onde tinha ido? Vance não fazia ideia, mas sabia onde começar a procurar.

Naquele quarto lá embaixo… Aquele cheio de entulhos.

O cheiro de mofo fez o nariz do garoto coçar assim que ele abriu a porta. Não era de surpreender. O piso de madeira do quarto havia sido tomado por caixas empoeiradas, empilhadas em torres tão altas que mal dava para ver as paredes cobertas com um papel de parede florido. Dentro das caixas havia toda sorte de quinquilharia — livros infantis, brinquedos de quando Ada era pequena, roupas que já não cabiam em ninguém… Mas onde estavam as fotografias antigas?

Vance resolveu ir mais fundo. Espremeu-se entre as caixas, abrindo espaço até o outro lado do cômodo. Ali, a poeira era tanta que ele precisou prender a respiração, mas seguiu em frente mesmo assim, afastando o que restava de um velho berço de madeira. Então, se agachou para vasculhar mais algumas caixas…

E tudo escureceu.

Confuso, Vance sentiu o mundo girar. Tentou voltar a respirar, só que não havia ar ao seu redor… Não havia nada ao seu redor.

Socorro… Socorro!

Mas até sua voz desaparecera, e não demorou mais que alguns segundos para sua consciência abandoná-lo também.

Capítulo 3 (capacete)

3. O homem na armadura

Quando Ada abriu os olhos, encontrou a escuridão. Cega e confusa, permaneceu imóvel por longos segundos, até se acostumar com as sombras.

Estava enclausurada numa cabine apertada. Ouvia cascos de cavalos lá fora, o piso sob ela sacudia e rangia, e a única fonte de luz era a fresta debaixo de uma porta fechada. Que lugar era aquele? Parecia o interior de uma carroça, mas aquilo não fazia sentido algum… E sua cabeça não conseguia bolar qualquer explicação, porque doía como se fosse explodir.

Lentamente, Ada se levantou. Ao se apoiar nas paredes, descobriu que segurava numa das mãos o retrato do pai. A fotografia aguçou sua memória.

Lembrou-se de que a apanhara antes de dormir, para examiná-la enquanto o sono não vinha. Quando enfim ele veio, não durou muito tempo. Ada foi arrancada da cama por um vulto de preto, que a arrastou pelo quarto, tapando sua boca para que não conseguisse gritar. Ada tentou resistir, mas o vulto a dominou e a forçou a engolir um líquido estranho e de gosto ruim. Daí em diante, já não se lembrava de nada…

Era a primeira vez que estava livre do sedativo — e não podia perder aquela chance. Forçou a porta da cabine, mas descobriu que estava trancada. Com os dedos tremendo, Ada tateou as paredes enquanto gritava por ajuda.

— Ei! Alguém! Socorro!

Por alguns instantes, nada aconteceu, até que a carroça parou de repente. Ada foi atirada contra uma das paredes. Antes que ela conseguisse se levantar, um cavaleiro de armadura abriu a porta e entrou na cabine. Sua couraça era branca, e pelas placas de aço serpenteavam filetes de ouro, subindo até o capacete que escondia seu rosto sob um visor escuro. Às suas costas, presa a um de seus ombros, balançava uma capa dourada. Diante do cavaleiro, Ada se sentiu sufocada.

— Dâmia… Finalmente nós nos encontramos — o homem na armadura falou, a voz abafada pelo capacete.

A menina não disse nada.

— Sei que não temos lhe oferecido a melhor hospitalidade, mas isso não a dispensa das boas maneiras. Se hoje é uma deusa, é porque eu a fiz assim. Deveria curvar-se.

E uma força invisível caiu sobre Ada, dobrando seu corpo até colocá-la numa posição de reverência. Aterrorizada, a menina tentou se levantar, mas seus músculos simplesmente se recusavam a obedecê-la.

— Assim está muito melhor — disse o homem, e a força desapareceu, tão subitamente quanto surgira.

Imediatamente, Ada rastejou para um canto, grudando as costas contra a parede.

— Quem… Quem é você? — gaguejou. — O que quer de mim?

— Eu sou Magnum, imperador desse mundo, e de você quero tudo.

Gostou?

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